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Cantando fora de tom: políticas públicas, direitos sociais e o Judiciário

Virgílio Afonso da Silva

 

Ler constituições pode revelar países sensivelmente diferentes daqueles existentes no mundo real. Ler as constituições dos países da América Latina dá a impressão, por exemplo, de que em nenhum lugar do mundo o Estado de bem-estar é tão desenvolvido quanto nesses países. Ler constituições como a da Alemanha, a dos Estados Unidos ou a da Noruega pode dar a impressão contrária. Qualquer pessoa sabe, contudo, que o acesso à educação, à saúde, ao trabalho ou à moradia é muito mais restrito em países latino-americanos, especialmente se comparado com países desenvolvidos. No intuito de convergir realidade e texto constitucional, é necessário, entre diversas outras coisas, que todos os agentes estatais - incluindo não apenas governo, legisladores e administradores, mas também os juízes - desempenhem suas tarefas de forma concatenada na realização dos direitos sociais previstos pela constituição. Mas a harmonia está, neste âmbito, muito longe da realidade.

Embora democracia e direitos fundamentais sejam, isoladamente considerados, conceitos positivos, isso não significa que eles coexistam harmoniosamente. Muito pelo contrário: uma das principais finalidades de uma declaração de direitos fundamentais é a de restringir a discricionariedade de legisladores e governos. Liberdade de religião, por exemplo, significa, entre outras coisas, que o Estado (sobretudo o legislador e o governo) não podem impor uma religião aos cidadãos. Liberdade de expressão e liberdade de imprensa implicam a proibição de uma censura estatal etc. Nesse sentido, declarações de direitos costumam criar quase que uma zona livre em face do Estado, no âmbito da qual os cidadãos gozam de uma quase completa autonomia para decidir sobre os seus atos. Em quase todos os países do mundo ocidental, é tarefa do Judiciário controlar se governo e legislador respeitam as liberdades dos indivíduos. Se os juízes (em geral de uma corte suprema ou de uma corte constitucional) estiverem convencidos de que uma determinada lei ou ato governamental restringe de forma desproporcional um direito garantido pela declaração de direitos, eles - os juízes - têm a competência de declarar tal lei ou ato como inconstitucional. Essa situação é freqüentemente expressa por duas dicotomias paralelas: democracia vs. direitos fundamentais e legisladores vs. juízes. A tensão é evidente e esse é um dos mais importantes objetos de estudo do direito constitucional contemporâneo. Juízes e legisladores cantam fora do tom com relativa freqüência. Mas a situação pode ser ainda mais complicada.

As declarações de direitos de muitas constituições promulgadas após a segunda guerra mundial contêm não apenas os direitos de liberdade mencionados acima, mas também direitos sociais, os quais não pretendem criar uma zona livre da atuação do Estado, mas, ao contrário, exigem uma participação ativa de todos os agentes públicos na sua realização. Como exemplo, a constituição brasileira garante um direito à educação, um direito à saúde, um direito ao trabalho, um direito à moradia, um direito ao lazer, um direito à segurança, um direito à previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. É desnecessário dizer que nenhum desses direitos é completamente realizado no Brasil. Ao contrário: segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, embora o Brasil tenha o nono maior produto interno bruto do mundo, ele possui também a quarta maior taxa de desigualdade social.

No Brasil, existe uma crença muito difundida entre juristas e operadores do direito de que os indivíduos estão sempre mais bem protegidos se os juízes puderem interferir sempre e ter a última palavra quando se trata de questões de políticas públicas. O raciocínio que subjaz a essa crença é bastante simples: em primeiro lugar, direitos sociais necessitam de políticas públicas para serem realizados; em segundo lugar, se alguém não tem total acesso a algum direito social (educação, saúde etc.), isso significa que o governo e o legislador não cumpriram a sua tarefa; em conseqüência, somente os juízes poderiam corrigir esse estado de coisas, concedendo aos indivíduos os benefícios que eles não receberam diretamente do governo, como medicamentos ou o tratamento contra alguma doença.

Embora essa linha de pensamento seja sem dúvida atraente, eu sustento que ela é, em um grande número de casos, simplesmente equivocada, pelas razões a seguir.

Quando juízes decidem casos envolvendo direitos sociais e políticas públicas, eles com freqüência ignoram o caráter coletivo desses direitos, tratando os problemas a eles relacionados como se fossem iguais ou similares aos problemas relativos aos direitos individuais. Que tipo de conseqüências negativas esse tipo de enfoque pode ter? Para responder a essa questão, eu utilizo um exemplo real. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil tem o mais avançado programa de combate à AIDS entre os países em desenvolvimento - programa que inclui a distribuição gratuita de medicamentos, entre outras medidas. No entanto, há um grande número de decisões judiciais concedendo a indivíduos medicamentos que não estão incluídos no programa. Tais decisões simplesmente acatam o argumento de que esses medicamentos são alegadamente mais eficientes do que os outros no trato das conseqüências que a AIDS tem na saúde dos pacientes. Embora esse tipo de decisão seja normalmente visto como uma vitória da justiça social contra a incompetência governamental, há dois pontos importantes que reclamam um enfoque menos simplista para a questão. Em primeiro lugar, em um cenário de recursos escassos, os custos criados pelas decisões judiciais têm que ser cobertos pela transferência de recursos de outras políticas públicas. Isso significa, por exemplo, que poderá haver menos dinheiro disponível para comprar medicamentos contra outras doenças ou para construir hospitais e contratar médicos. O caráter coletivo dos direitos sociais é negligenciado em favor de um enfoque individualista, já que o dinheiro que poderia ser usado em programas globais tem que ser alocado para reclamações individuais. É possível dizer, nesse ponto, que sucessos individuais freqüentemente significam um insucesso coletivo. Além disso, muitas das ações individuais requerendo esse ou aquele medicamento, ou esse ou aquele tratamento médico, são fomentadas pela indústria farmacêutica, com a esperança de que um maior número de decisões judiciais concedendo seus medicamentos aos indivíduos possa pressionar o governo a incluí-los na lista do programa oficial de saúde. Isso pode significar um grande lucro para essas companhias. Assim, embora os juízes em geral não estejam conscientes disso, suas decisões não apenas enfraquecem o caráter coletivo dos direitos sociais e das políticas públicas, mas também ajudam a indústria farmacêutica a vender novos medicamentos às custas do dinheiro público

Alguém poderia argumentar que, mesmo que os problemas apontados acima sejam verdadeiros, é também verdadeiro que muitas pessoas somente têm acesso a tratamentos médicos adequados ou à realização de outros direitos sociais se recorrem ao Judiciário. Nessa linha de raciocínio, isso seria suficiente para justificar um ativismo dos juízes. Talvez isso correspondesse à realidade em uma sociedade razoavelmente justa e igualitária, mas com certeza não o é no Brasil e em vários outros países em desenvolvimento, e a razão é relativamente simples: a despeito dos esforços do Ministério Público e da advocacia pro-bono, o sucesso judicial no Brasil está quase sempre ligado à necessidade de se contratar bons advogados. Um acesso real ao Judiciário é, por isso, restrito à classe mais favorecida. Não é uma coincidência que grande parte das ações judiciais por medicamentos esteja relacionada à AIDS e não a doenças associadas à classe baixa, como difteria ou tuberculose. Enquanto os pobres não têm acesso ao básico, a classe média-alta consegue sucessos judiciais para pagar tratamentos caríssimos.

Mas, ao contrário do que pode parecer, eu não pretendo defender aqui nenhuma forma de passividade total do Judiciário. Como eu salientei no início deste texto, a implementação real dos direitos sociais requer a cooperação de todos os agentes públicos, incluindo os juízes. Contudo, se juízes e governo não cantarem no mesmo tom e não estabelecerem um diálogo, nós vamos continuar a assistir a um tentando colocar em prática a sua idéia individual de justiça social de forma completamente independente dos outros. Infelizmente, nenhum deles têm talento para ser solista. Então seria melhor eles começarem a ensaiar juntos.